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Há momentos da nossa vida que consideramos especiais porque podem conter e exprimir os sentimentos e os significados mais profundos daquilo que somos e fazemos. Talvez por isso sentimos o desejo de fotografá-los ou filmá-los: todos sabemos que a vida passa como um sopro e desejamos em certo sentido guardar aqueles gestos, pessoas, palavras e lugares que representam mais do que aquilo que mostram, porque falam ao coração. Quem não gosta de guardar aquela fotografia gasta e até rasgada, que traz paz ao coração e reforça a fé na vida toda a vez que a olha?
Talvez essa experiência nos ajude a ler e a compreender um pouco mais as páginas do evangelho que a liturgia de cada domingo nos faz ouvir. Elas são como que fotografias com as quais os primeiros cristãos quiseram nos transmitir alguns momentos especiais da vida de Jesus. Talvez, mais do que fotografias, elas são uma obra de arte. Porque, como o pintor escolhe com atenção a cena e pinta por horas a fio cada um dos seus particulares, assim os evangelistas compuseram com cuidado e muito tempo, com papiro e tinta, cada momento da vida de Jesus, a fim de que, depois de dois mil anos, escutando-os nós pudéssemos ter sentimentos e entender da mesma maneira que os primeiros cristãos, como acontece quando se faz parte da mesma família e se escutam as histórias daqueles que nos precederam.
Entre os momentos especiais da vida, vivido e contado de maneiras diferentes, de acordo com o ambiente cultural e religioso, podemos citar a festa das bodas de Caná, conforme nós lemos em João 2,1-11. Segundo o evangelista, Maria foi a um casamento na cidade de Caná. Também Jesus e seus discípulos haviam sido convidados. De repente, quando a festa estava animada, veio a faltar o vinho. Maria, atenta às necessidades dos noivos, pediu a Jesus que fizesse alguma coisa. Jesus a questionou, porque ainda não havia chegado o seu momento. No entanto, ela disse para os empregados fazerem o que Ele mandasse. Jesus mandou que eles enchessem as talhas da purificação que estavam vazias num canto da casa. Eles não somente as encheram e levaram da água ao encarregado da organização da festa. Ele falou para o noivo que o costume era servir primeiro o vinho bom e depois o de pior qualidade. Mas o noivo havia feito o contrário. A partir daquele momento os discípulos começaram a ver Jesus de maneira diferente. Segundo João, eles passaram a crer em Jesus.
É uma passagem simbólica e central da vida, que recolhe todo o passado e o liga com o futuro. A vida, iluminada pelo amor, vence o medo e as incógnitas sobre o futuro: os discípulos de Jesus descobrem que o amor é mais forte do que a morte.
Jesus, Deus que veio viver totalmente a nossa vida humana, pertencia à cultura e à religião judaica, que muito valorizava o matrimônio. O matrimônio era sinal da bênção divina sobre o mundo, caminho através do qual o milagre divino da criação continuava a se perpetuar no mundo. A festa do matrimônio, que durava mais de um dia, para permitir que as pessoas degustassem em plenitude o seu significado e a sua promessa, era também uma experiência de fé, porque cada matrimônio atualizava a aliança de Deus com a humanidade e renovava a espera do Messias.
O artista-evangelista, João, escolheu um momento especial da vida de Jesus para apresentar ao mundo o início de sua missão no mundo com a cena de um casamento. Também a Igreja, quando organizou as leituras do ano litúrgico, escolheu essa página de João para marcar o início do tempo comum depois da Epifania e do Batismo de Jesus – na verdade, a tradição da Igreja exprime o mistério da Epifania não somente com a visita dos Reis magos, mas também com o Batismo de Jesus e as bodas de Caná, porque nesses mistérios Jesus se manifesta ao mundo. Por que uma escolha como essa? Basta um pouco de sensibilidade artística e litúrgica para intuir que não se trata de um caso, não é uma maneira como outra para começar a história de Jesus, nem mesmo o período do tempo comum.
Se lermos com atenção, calma e interesse essa página do evangelho, nós perceberemos que a cena não quer somente descrever um fato daquele tempo, mas quer nos comunicar um significado que vai muito mais além daquilo que vemos no quadro. Quem era o casal? Como se chamavam? Qual a sua história? Nada nos diz João sobre isso. A sua atenção e a nossa se voltam para o fato de que, num determinado momento da festa, o vinho acaba, e, por isso, a festa corre o risco de virar um fracasso. Sabemos quase de cor como a história acaba: o tão extraordinário o gesto de Jesus que transforma a água em vinho já se tornou algo proverbial.
Não é difícil compreender por que Jesus permitiu que a festa de bodas não acabasse mal. Se o matrimônio marca o início e o fim da vida e se o vinho é símbolo da festa e da alegria, podemos concluir que Jesus veio ao mundo para que jamais faltasse o vinho do casamento, jamais faltasse a alegria da vida, isto é, a confiança de que a vida, mesmo com os seus limites humanos – físicos e psíquicos –, é um dom gratuito, fruto de um grande amor.
Alargando o olhar ao quadro mais amplo do evangelho, nós percebemos que João insere os primeiros episódios da vida de Jesus no arco do tempo de uma semana. A festa das bodas de Caná acontece no sexto dia, depois que nos dias precedentes havia começado a acolher e a chamar os seus discípulos. Há outra história na Bíblia que começa com os dias da semana: a criação do mundo, como nós lemos no capítulo primeiro do livro do Gênesis. No sexto dia, Deus criou o homem e a mulher, abençoando-os na sua união e capacidade de dar a vida. Não corremos qualquer risco de errar se ligarmos essas duas histórias, visto que os primeiros cristãos tinham a consciência clara de que Jesus havia inaugurado o tempo último – que vem a completar o primeiro, da criação. Com a vinda de Jesus, chegou o tempo do matrimônio, celebra-se definitivamente a aliança de amor entre Deus e a humanidade, da qual a aliança entre o homem e a mulher é, desde o início da criação, um sinal do amor que Deus tem pela humanidade. É por isso que João diz que, naquela ocasião, Jesus deu início aos sinais e revelou a sua glória – a glória de Jesus, que é a glória de Deus, é tornar possível a felicidade plena da humanidade.
Talvez alguém, durante uma escuta atenta, terá notado uma coisa um pouco estranha. À observação de Maria – “Eles não têm mais vinho” –, Jesus toma um pouco de distância da mãe e, em seguida, parece querer negar a sua ajuda. Maria, como se tivesse entendido outra coisa, convida os servos a obedecerem àquilo que Jesus pedir. Parece quase que Jesus tenha feito esse sinal extraordinário contra a própria vontade, um pouco forçado pela mãe. Olhando bem para o quadro e para toda o evangelho de João, não é isso o que ele quis dizer. Jesus o cumpre com toda a vontade e consciência. No entanto, a João interessa fazer ressoar nessa primeira página a frase de Jesus: “ainda não chegou a minha hora” – que nós provavelmente devemos entender mais como uma pergunta do Filho à mãe e a todos os leitores. João quer nos fazer compreender que o acontecimento de Caná é somente o início de algo que ainda não está completo. Desde a primeira página, nós percebemos que a descrição de João tem por finalidade que cheguemos a entender o que virá a seguir. A conclusão de tudo somente poderá ser entendida a partir da morte e da ressurreição de Jesus. A aliança de Deus com a humanidade se cumpre com o dom total da vida de Jesus. Durante a última saudação aos seus discípulos, aqueles que viram a sua glória e acreditaram lá em Caná, o vinho da festa e o sangue da morte se tornam uma só e mesma coisa. Na cruz, Jesus chama de novo Maria com o título de “mulher”, que, na sua dor, recebe um novo filho no discípulo que Jesus amava. A alegria da vida, ameaçada de fracassar, por causa da morte, será plena no momento do novo encontro com o Ressuscitado. Eis aí a razão pela qual o amor é mais forte do que a morte.
Como não guardar uma fotografia como essa? João a coloca no início da fé dos discípulos de Jesus e nossa. Nela estão presentes as pessoas que acreditam, a começar por Maria. O que fica dela em nós, cristãos do século XXI? Deve ficar o amor de Deus pela humanidade que deve despertar em nós a fé, a esperança e o serviço ao mundo e aos irmãos.
Pe. Pedro Pereira Borges
Pró-Reitor de Pastoral UCDB
Evento será realizado no auditório do bloco M